quarta-feira, 15 de julho de 2009


Muito tempo depois, eu a vi outra vez. Eu estava trabalhando num jornal e tinha que fazer uma entrevista com ela. Harriett estava sozinha e não ficou feliz em me ver. Continuava grande e consumida e tinha nos olhos uma sombra cheia de dor. Fumava. Falei da cidade, das pessoas, das ruas - mas ela pareceu não lembrar. Contou-me de seus filmes, seus desfiles, suas viagens - contou-me tudo com uma voz lenta e rouca. Depois, sem que eu entendesse por que, mostrou-me uma coisa que ela tinha escrito. Uma coisa triste parecida com uma carta. Tinha um pedaço que nunca mais consegui esquecer, e que falava assim:

sabe que o meu gostar por você chegou a ser
amor pois se eu me comovia vendo você pois
se eu acordava no meio da noite só pra ver
você dormindo meu Deus como você me doía
vezenquando eu vou ficar esperando você
numa tarde cinzenta de inverno bem no meio
duma praça então meus braços não vão ser
suficientes para abraçar você e a minha voz
vai querer dizer tanta mas tanta coisa que eu
vou ficar calada um tempo enorme só olhando
você sem dizer nada só olhando olhando e
pensando meu Deus ah meus Deus como você
me dói vezenquando

Quando terminei de ler, tinha vontade de chorar e fiquei uma porção de tempo olhando para os pés dela. E pensei que ela parecia ter escrito aquilo com seus pés de criança, não com as mãos ossudas. Eu disse para Harriett que era lindo, mas ela me olhou com aquela cara dura que a gente não esperava de uma Harriett e disse que não adiantava nada ser lindo. Tive vontade de fazer alguma coisa por ela. Ninguém soube nunca dos pés de Harriett. Só eu. Um desses invernos eu vou encontrar com ela no meio duma praça cinzenta e vou ficar uma porção de tempo sem dizer nada só olhando e pensando: que pena - que pena, Harriett, você não ter sido loura. Vezenquando, pelo menos.


(Harriett - Caio Fernando abreu)

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